quem que onde como

trabalho na frança como Game Designer. aqui conto historias que acho interessantes. os assuntos sao geralmente cinema e video games mas nao apenas. de forma alguma.


archives

altri:

ask the dust
carrinho no pescoco
consultorio do dr miranda
escrotorio
man living by some law
o sublime e o ridiculo
pastelzinho


shoot back

Site Meter

This page is powered by Blogger.

Da linguagem transmitindo a mensagem e a mensagem em si: Fragmentação e ambivalências da Coisa quando feita Objeto com analogias e exemplos do cinema norte-americano.


O caminho que pode ser expresso não é o Caminho constante
O nome que pode ser pronunciado não é o Nome constante
Sem-Nome é o princípio do céu e da terra
Com-Nome é a mãe de dez mil coisas

Tao Te King - Lao Tse

O filme rotoscópico1 é a representação estética da natureza do sonho. Freud coloca a mente consciente como a ponta do iceberg do intelecto, o inconsciente sendo todo o fundamento dessa crosta pequena e frágil. Assim, o tema do filme é a investigação do inconsciente numa realidade não-objetiva mas baseada nas experiências conscientes. A animação é, por sua vez, baseada em filmagens reais, de atores reais. Essa realidade maquiada (desnudada?) é o próprio sonho. O aparentemente real talvez seja uma roupagem simples demais para a complexidade da compreensão humana. A compreensão em seu grau mais profundo é mutante, é o próprio sonho. Os personagens verborrágicos discursam sobre seus value-sets2, cada qual com sua estética própria, em sua realidade, em sua gridline3. Essa gridline, esse value-set passa a ser confrontado por outros, com visões divergentes e o personagem principal vaga, escutando, espectador da realidade dos outros. Mantendo seu silêncio ele não abraça nenhuma perspectiva, tenta alcaçar o sub species aeternatis4 que acaba o levando para a terra dos mortos.
O personagem percebe a ambivalência das perspectivas, a retórica não pode se justificar sozinha, não há visão mais correta que a outra, assim ele continua sempre caminhando e recebendo visões distoantes e por vezes contraditórias mas sempre válidas dentro do seu contexto. Cada teoria levanta uma série de conceitos dos quais é parte integrante. A consideração de quais aspectos da realidade serão levados em conta já são um julgamento moral que irá determinar a teoria, reforçando-a. Não há conceito isolado, as próprias justificativas impessoais são parte do postulado. Como para provar um teorema é obrigatório apreender o value-set da matemática, concordando com os conceitos de multiplicação, adição, para apreender uma frase é necessário concordar com a língua em que ela está escrita e ainda com a função dos adjetivos, dos avérbios, ao apreender uma teoria são levadas em conta as justificativas e estas são parte inerente da teoria5 . As imagens são por vezes complexas e cheias de nuances, como aquarelas ou pinturas cubistas, por vezes os traços são infantis, simples. Assim são as teorias, as perspectivas, mas todas cheias de paixão e com sua própria lógica. O professor que discorre sobre Sartre mostra que a liberdade e a responsabilidade plena de nossos atos é o farol que guia nossa vida. Em outro momento, o problema do livre arbítrio é questionado. Como podemos ser responsáveis se somos definidos por forças que não controlamos? No carro um homem grita palavras de ordem Thoreaunianas de um alto-falante. É isso então a afirmação da natureza humana? Não aquiescer? E a vontade de poder? Se um homem, aceitando Nietzsche, levanta seu braço forte e exerce poder sobre a natureza e sobre seus semelhantes alguém deve aquiescer. Não há forte sem fraco. Não há senhor sem escravo. No entanto são pontos em comum que mantêm o fio condutor. Uma certa insatisfação amarra todos os discursos, desde os jovens baderneiros teóricos que se deparam com um velho em cima de um poste (a ação inútil e o discurso estéril) até a possibilidade do cinema vir a ser, em sua essência, a manifestação da Coisa6 . Por mostrar a realidade do momento o cinema pode ir a aprofundá-la e captar o que há de sagrado nesse momento, captar a Coisa de alguma forma, como a cena do saco voando em Beleza Americana. O menino chocado com a Coisa aparecendo diante de seus olhos, William Blake com cinco anos de idade gritando da janela, em prantos, dizendo que viu a face de Deus. Essa percepção momentânea de tudo seria o despertar, seria finalmente acordar depois de ver o mundo do outro lado do espelho7 .
A Coisa. A Coisa é a realidade em sua plenitude. “Quando as portas da percepção forem limpas o homem verá as coisas como elas realmente são, infinitas” - Aldous Huxley. Essa Coisa é percebida através do cérebro e expresso em idéias abstratas. Primeiridades e Terceiridades, retornar da Terceiridade para a Primeiridade é chegar à compreensão da Coisa em si. No entanto não há expressão para essa compreensão. As idéias abstratas não podem abarcar a totalidade da Coisa. A Coisa é desconhecida. A Expressão exprime objetos e objetos são apenas aspectos da Coisa. E nem todos os objetos do mundo podem chegar a definir a coisa. Talvez apenas um de seus aspectos, talvez apenas uma de suas perspectivas. Assim como numa pintura cubista, o violão está fragmentado mas existe um violão apesar de sua destruição visual por várias perspectivas simultâneas. Entretanto a pintura não faz música. A Coisa em si necessita de uma perspectiva cada vez maior, até que o personagem chega à Terra dos Mortos. Lá, ele vê um jogador de pinball. O primeiro interlocutor em uma atividade lúdica, despretensiosa. Desde o começo do filme ninguém mais “brinca”, todos discursam, todos têm algo a dizer apaixonadamente, todos têm uma perspectiva a ser escutada e compreendida e abraçada e levada à sério. O homem do pinball não. Deixando de lado a tentativa de sistematização da Coisa ele conseguiu o contato com a Coisa. (Quando você para de correr atrás, chove mulher). O homem do pinball pára de jogar após alguma insistência e conta uma história. Ele mesmo não entende muito bem e afirma que não pode explicar nada. Abandonando a objetividade do abstracionismo ele diz que a Coisa deve ser percebida, não apreendida. Ele aceita a impossibilidade de representação da Coisa em qualquer forma. “Que o homem tenha um cérebro mas que nunca alcance” - Hilda Hilst. Ele se refere ao momento de interação com a Coisa como “one of those things that will change your life.” O momento de interação é justamente o despertar. O cara do pinball explica como foi seu despertar. Ele simplesmente “acordou”. O personagem já está na Terra dos Mortos, ele adquire a perspectiva suprema para a compreensão da vida: a ausência da vida. Somente daí ele pode despertar. Esse despertar ocorre no mesmo lugar que a história começou, tornando a narrativa circular.
O meio passa a ser a mensagem8 , e a falta de história passa a ser a própria falta de indentidade. As diversas perspectivas e representações passam a ser os diversos pontos de vista sobre a Coisa, os personagens passam a ser as interações com outras perspectivas e o sonho passa a ser a realidade. Waking Life significa vida desperta ou despertando a vida. A vida desperta é o sonho, é onde efetivamente existimos, filosofias orientais sempre pregaram o mundo como ilusão, Samsara, dança de Shiva, ilusão do Ego ou ilusão de Maya. Filósofos já perceberam a mesma cosia com muito mais palavras (e portanto, menos objetividade) e até filmes recentes como Matrix ou Truman Show abordam a idéia da realidade como representação completa. A vida já foi comparada ao teatro (tem uma citação de Shakespeare boa que não me lembro) e agora ela é comparada em TODOS os seus aspectos a uma representação. Os próprios objetos são representação, as coisas que pegamos são formadas de vazio. Somos personagens no sonho de alguém. Se o tempo não existe somos apenas palavras que existem enquanto são lidas.